Quinze anos depois do espetacular sucesso nacional e internacional (França, Itália, Portugal, Espanha, Argentina) do primeiro disco dos Tribalistas, Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown voltam a se reunir para uma nova aventura musical.
Assim como no primeiro disco, nada foi planejado com antecedência ou programado. O método foi o mesmo: um disco caseiro de três amigos compositores de origens e formações muito diversas, registrando uma música por dia com um grupo pequeno de músicos – todos parceiros e amigos – e a mesma equipe técnica do trabalho anterior. Uma nova edição do mesmo projeto. O disco foi gravado no Rio de Janeiro, entre 20 de março e 2 de abril deste ano.
Parceiros entre si, o trio vem colecionando inúmeras músicas e se alimenta da diversidade de estilos e da harmonia entre os contrastes que os separam e os unem. Um dos maiores sucessos da virada do milênio, Tribalistas (2002) não teve lançamento, entrevistas promocionais, shows ou apresentações em televisão. Apenas um showcase de meia hora com os três foi apresentado em Paris, em 2003, e a força da música se comunicando com as pessoas. O sucesso espetacular e inesperado foi como nos velhos tempos, pelo rádio e no boca a boca.
O mundo mudou muito nesses 15 anos mas Marisa, Carlinhos e Arnaldo continuam os mesmos, só que mais amadurecidos, mais populares, mais prestigiados e compondo melhor.
Nelson – Uma coisa que chama a atenção nesse novo trabalho é a personalidade musical que vocês criaram. Desenvolveram um “som Tribalistas”, um tipo de levada, uma instrumentação acústica que você reconhece nos primeiros acordes, antes mesmo de começarem a cantar. Uma sonoridade que até o pedreiro que estava em minha casa comentou, animado, ao me ver ouvir esse novo disco: “é os Tribalistas, é?” É tudo simples e ao mesmo tempo muito elaborado.
Marisa: É um DNA
Nelson: Como começou o disco?
Marisa: A gente mora em cidades diferentes, só que de vez em quando dá um jeito de se encontrar; às vezes em dupla, às vezes os três. E quando acontece o encontro, todos levam as suas coisas já começadas e as músicas e letras vão surgindo. Mas não estávamos pensando exatamente em fazer um disco. Estávamos em férias criativas, que pra gente é algo sempre revigorante, refrescante, gostoso. Além de curtir uma praia, e estar com os amigos, fazemos músicas. E conseguimos nos encontrar os três, por dois períodos, no ano passado. Foram duas fugas pra Bahia, de quatro, cinco dias, e aí as músicas surgem fácil: duas, três, todo dia!
Brown: É o ar da Bahia e o que o nosso ócio criativo propõe. De um certo modo nós somos retirantes, não é? E a nossa intuição de retirante nos leva a expandir nos nossos temas de uma forma que é impensada, que apenas acontece. A nossa forma de compor é muito intuitiva, mas isso acontece porque nós somos Tribalistas. É o melhor que a gente pode oferecer dos nossos dons ao ser humano.
Nelson: Esse som Tribalista, esse combo, humano e musical, étnico e cultural, tem aspectos fortíssimos da brasilidade, não é?
Marisa: É, os violões, as percussões, as vozes …
Nelson: Um baiano intuitivo, um intelectual paulista e a morena carioca nascida no samba. São quase arquétipos, o sonho de marqueteiros. Eu estava brincando que vocês são um clichê! (rs…) Porque não podia ser mais perfeito. Isso é o som do Brasil que está no Nordeste, está em São Paulo, no Rio… Reflexão e intuição, a coisa carioca, malandra, toda a tradição do samba… É um encontro extraordinário sem o peso de ser um grupo permanente. Com os Tribalistas vocês vivem só a parte boa de um grupo.
Marisa: São férias!
Nelson: Tem dia que você não aguenta a si mesmo, não é? Imagine um grupo! (rs…)
Arnaldo: São férias. Não tem a obrigatoriedade e há uma coisa muito espontânea. Tem uma magia… Quando a gente se encontra, tudo sai com uma naturalidade e com essa complementariedade. Os três estados brasileiros, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro… Ao mesmo tempo, personalidades tão diferentes… A gente conseguiu juntar agora a mesma turma que gravou o primeiro Tribalistas. Não só nós três, mas o Dadi, o Cézar Mendes, o Alê Siqueira, a Dora Jobim, aqui filmando este nosso encontro e que tinha documentado tudo do primeiro Tribalistas. Marisa novamente como produtora; e eu, Brown, Alê Siqueira e Daniel Carvalho, filho do Dadi, como coprodutores…
Nelson: Tem homem e mulher, preto e branco, origens e formações diferentes, tem tudo… é uma síntese de todas essas coisas.
Arnaldo: É meio assim, a gente se junta e aquilo pode sair ou não, mas acaba saindo sempre, de um jeito muito inesperado. A gente fazer uma música sobre os refugiados (Diáspora), sobre o trabalho (Trabalivre), outra sobre as ocupações das escolas (Lutar e Vencer), são questões que a gente em nenhum momento sentou e disse: vamos falar sobre isso. São assuntos que vieram quando a gente se juntou para compor. Então é muito espontâneo, muito natural, não tem nada intencional…
Brown: Eu vejo muito como um encontro de percussionistas, e percussão é um instrumento que você não pensa para tocar. Embora essa ocupação que a gente traz para o pensar é também responsável, por mais que a gente esteja em férias. Nós temos um prazer em conjunto que transcende qualquer situação. E o tempo inteiro a gente está desejando que as pessoas encontrem esse prazer, encontrem esse afeto familiar. A gente está sempre circundado pelos filhos, pelos amigos, com pessoas que gostamos, então tem algo familiar que nos envolve muito e termina, dentro dessa espontaneidade, trazendo algumas responsabilidades, não sem durezas, para os temas que espontaneamente saem.
Nelson: Também vejo os Tribalistas como uma música muito agregadora, muito gregária. Você ouve aquele som, aqueles violões, parece que tá na sala, tá no mato, tá na praia… (rs…) Parece um som que “ah, isso qualquer um faz, né?” Você sente que não é uma coisa dolorida, é prazerosa, é música de acampamento. Tem uma leveza…
Marisa: Acho que o nosso processo é leve. A gente procura manter esse prazer, essa alegria. Acho que isso acaba imprimindo porque pra gente é um prazer enorme poder estar junto! Por exemplo, cada um de nós tem suas carreiras, todo mundo batalhando o dia a dia, viajando por aí, fazendo seus shows, então é quando a gente pode se encontrar e descarregar aquele peso das costas e dividir isso (rs…). “Tem o Arnaldo, tem Brown? Ah que beleza!” Você contar com o time todo ali e poder somar em vez de estar ali sozinha, isso é um alívio e um privilégio.
Arnaldo: E é engraçado como a música dos Tribalistas tem uma personalidade própria, que eu não faria no meu trabalho solo, nem Marisa, nem Carlinhos. Tem uma cara, uma linguagem ali que a gente mesmo se surpreende quando ouve o que gravou. A gente fala: “Nossa, a magia tá aí!”
Nelson – Diáspora é uma das músicas que mais me chamaram a atenção quando ouvi, porque há 15 anos, na época do primeiro Tribalistas, certos temas sequer existiam. As ocupações urbanas, os refugiados, a ocupação de escolas… Antes falava-se de diásporas africanas, judaicas, já estabelecidas na História, mas isso virou um tema que ganhou uma urgência, uma inevitabilidade.
Brown – O tema da diáspora não é momentâneo, ele parece cíclico, persiste. Para nós aqui, todos nós, até brasileiros, tem muita gente que veio fugido da guerra. Eu sou baiano e vivo muito uma cultura dos galegos que fugiram da Guerra Civil espanhola, da Galícia… Mas meus outros avós também fugiram da seca. Isso gerou nas cidades um conceito de coesão, mas também de estranheza. Mas Tribalistas quer dizer tudo isso, que nós somos uma aliança constituída pela música.
Nelson: Tem algumas músicas nesse disco com temáticas que não estavam, não poderiam estar, no Tribalistas 1, que era uma coisa mais leve de um modo geral. Mas ao mesmo tempo tem também músicas levíssimas como nem no primeiro Tribalistas tinha. Músicas como Os Peixinhos (em parceria com Carminho), delicadíssima, que, por contraste, acaba valorizando mais as “canções de guerra”, como Diáspora e Lutar e Vencer.
Marisa: A gente identificou três polos temáticos. Então é um disco tripolar! (rs…)
Nelson: Tripolar! Isso é ótimo! Vocês são um grupo tripolar!
Marisa: Um é esse foco dos assuntos coletivos, das coisas que a gente está vivendo hoje e fazem parte do dia a dia e aparecem como um reflexo natural ali nas músicas. São as canções que falam desses assuntos mais políticos, mais cotidianos, do momento, crônicas do nosso mundo contemporâneo. E tem um outro lado que é mais existencial mesmo, que é Ânima, mais profundo, mais individual e reflexivo, como Fora da Memória. E o terceiro é o campo amoroso, que aparece em Aliança e Feliz e Saudável. Um campo que é uma questão na vida de todo mundo, que é coletivo também mas fica no meio do caminho entre o coletivo e o individual. Eu acho que tem um pouco esses três polos.
Arnaldo: Uma coisa dá contraponto à outra. Tem um equilíbrio
Nelson: Você ouvir uma música dura como Diáspora e depois uma coisa tão leve e amorosa como Aliança, que é uma música de casamento, o verdadeiro sentido de aliança. E as pessoas pensam que é um anel no dedo, né? (rs…)
Marisa: É você ter um aliado…
Nelson: Duas pessoas que se aliam para uma coisa. Isso é o que sempre vi como o sentido de aliança e raríssimas músicas expressaram tão bem, com o que isso tem de leve, de bonito, de natural… É totalmente idealizado. Isso enche o coração das pessoas também.
Brown: Há 15 anos o Tribalistas era um bebê que agora está adolescente! (rs…) A gente terminou vendo guerras, nós vimos insatisfações, vimos várias coisas que terminaram sendo absorvidas nas temáticas de uma forma intuitiva. Mas acredito que nós continuamos apartidários e colaboradores nesse servir prazeroso. Isso é um delírio emocional bonito que a gente fica tentando explicar, mas a arte não se explica. Eu acho que toda essa cadeia de desejo, de envolvimento, ela vai vir no sentimento de cada pessoa: quem vai casar primeiro, eu ou o cara que estava ouvindo o disco? Nós vamos nos casar através da música! (rs…)
Nelson: Uma coisa que o público de música tem curiosidade em saber é como se faz uma música com cinco pessoas? Como é essa mecânica?
Arnaldo: Tem muitos jeitos, às vezes parte de uma harmonia, às vezes de uma melodia, de um pedaço de letra…
Brown – Se por exemplo Marisa, que toca um bom violão, começa a tocar, se inicia ali um processo de construção.
Arnaldo: Tem um registro muito bacana disso num DVD da Marisa (Barulhinho Bom), em que a gente está junto por acaso, um encontro pré-Tribalistas. A gente começa a compor ali na hora e é um momento muito interessante porque mostra como aquilo realmente começa, assim do nada!
Marisa: É igual a jogar baralho. É um jogo, uma brincadeira…
Nelson: Volta duas casas!
Marisa: Volta duas casas, abandona, mela o jogo, começa de novo… Pra isso precisa ter intimidade, admiração… Pode surgir de um assunto qualquer. A gente está falando de uma pessoa, de um personagem, uma frase engraçada que alguém falou… Qualquer coisa pode ser a fagulha que dá início a uma história. Ou alguém nos traz algo. O Pedro Baby trouxe uma música e a gente fez a letra com ele. Às vezes eu venho com uma letra, às vezes o Arnaldo vem com uma melodia, por mais que todo mundo pense que “ah, o Arnaldo é um poeta!”… Mas ele também faz música, como eu também faço letras. Os papéis se alternam… É que nem um jogo de tabuleiro onde o objetivo é terminar e fazer uma música no final. Pra isso precisa ter intimidade, respeito, admiração… porque você não vai fazer uma música com uma pessoa que você não curte.
Arnaldo: Um serve de impulso ao outro! Às vezes alguém joga uma ideia que acaba não servindo, mas por causa dela alguém cria uma outra ideia que entra na música. Então é um processo muito dinâmico…
Marisa: E acho que nós três somos generosos com a criação. A gente abre, a gente divide, a gente gosta disso.
Arnaldo: Porque na composição coletiva você tem que saber contribuir, mas tem que saber também abrir mão. Às vezes reivindicar, defender, às vezes largar uma coisa de que você gosta… E deixar a música ir para onde tem que ir. Isso é exercício coletivo.
Marisa: Outro dia me disseram uma coisa que achei muito interessante: tem que ser generoso não só para dar, mas também para receber. Se você não for generoso, você não consegue receber. Quando terminamos de compor, a gente tinha esse universo de canções e percebemos que não era um disco que poderia ficar esperando para ser gravado. E que ele seria mais potente com os três gravando juntos. Porque se eu cantasse Diáspora no meu disco, não ia ter a potência deles junto comigo. A gente fez 20 músicas, então ficaram de fora dez que eu vou gravar, o Arnaldo vai gravar, o Carlinhos vai gravar, alguém vai gravar, porque elas não tinham essa característica de parecerem mais fortes com os três juntos.
Arnaldo: Como no primeiro havia a música Tribalistas, com os versos “os tribalistas já não querem ter razão“, nesse disco também tem uma que é uma voz coletiva nossa: “somos todos eles da ralé da realeza, somos um só / somos um só, um só / 123, somos muitos, quando juntos / somos um só, um só”.
Brown: Acho que está realmente na delícia de se encontrar, na delícia do coletivo! Nesse respeito que é mútuo, nesse ouvir, nesse silêncio que é necessário, porque minha realização de pensamento, de estrutura, está muito no que o outro vai dizer. Porque ele passou por aquilo, ou porque ele está vendo aquilo de um lugar que tem muito mais espaço e densidade. A coisa da tristeza ou de uma saudade do futuro, torna-se mais maleável, mais doce, porque a gente parou para entender o pensamento do outro.
Nelson: Vocês acrescentaram outros elementos nesse combo, nessa sonoridade. Como o Pretinho da Serrinha, que é de uma outra escola musical, um tipo tão especial de criatividade, de linguagem… Como é que apareceu o Pretinho nos Tribalistas?
Marisa – Pretinho é da turma, né? Apareceu numa varanda com seu cavaquinho e entrou na roda! Ele e o Pedro Baby passaram para nos visitar em um desses encontros na Bahia, ficaram conosco dois dias e acabaram entrando no disco com duas músicas. As pessoas que estão no disco, tanto os dois como a Carminho, estão como autores, porque acima de tudo o disco é um registro autoral.
Nelson: E a Carminho, como entrou?
Marisa: Já havíamos gravado juntas uma música que eu e o Arnaldo fizemos para ela, Chuva no Mar. Eu tinha umas coisas começadas com a Carminho e aí a gente compôs Trabalivre, uma música sobre relação com o trabalho, que inclui o autoconhecimento e o aprimoramento pessoal, e ao mesmo tempo a necessidade de subsistência, de você se sustentar. O trabalho não é apenas emprego, o trabalho é a construção da vida. Mas ao mesmo tempo o que a gente procura fazer é o “trabalivre”, que é esse trabalho voluntário, amoroso, por vontade, pelo privilégio de fazer o que gosta, com quem você quer. Isso é o ideal, não é? A Carminho me disse: “Portugal tem tantos cantos de trabalho”. E eu falei: “no Brasil também”. E aí a fizemos juntas essa música falando desse assunto; primeiro a melodia, e depois a letra, por acaso, por coincidência… Arnaldo e Brown não sabiam que eu e Carminho estávamos falando disso…
Arnaldo: É, foi mesmo uma coincidência… A gente também começou a fazer uma letra sobre o trabalho quando Marisa veio com essa informação: “a nossa música tem a ver com cantos de trabalho”!
Marisa: A Carminho também trouxe um início de outra música, uma ideia, Os Peixinhos, uma música que a gente começou aqui no Rio, depois eu levei meio pronta e a gente fez a letra junto na Bahia. Veio o primeiro verso, que eu acho inclusive que é da Carminho (cantarola): “os peixinhos são…” A gente foi indo e depois Arnaldo e Brown terminaram. E eles ainda nem conheciam pessoalmente a Carminho.
Arnaldo: Depois ela participou do meu DVD gravado ao vivo em Lisboa.
Marisa: Ela entrou na turma assim, entrou na onda, ela veio aqui gravar, veio visitar a gente bastante no estúdio, e acho que pra ela também é uma experiência única. Em Portugal, que é um país pequeno e com uma música muito típica (o fado), a Carminho é grande. Mulher que se relaciona bem, viaja o mundo todo e eu sinto que ela tem vontade de romper essas fronteiras. Ficou bem clara a naturalidade com que ela encontrou a gente aqui. E a comunicação dela, o jeito dela se colocar, faz dela uma mulher do mundo.
Nelson: Em Portugal querem que ela seja só uma fadista, na tradição da família dela, e ela é muito mais que isso!
Brown: Os países, ou até cidades, tornam-se demasiadamente tradicionais, e passam a cobrar dos seus artistas que eles sejam uma manutenção daquelas veias estéticas já estabelecidas. Isso quando o artista é novo, e ela não deixa de ser. Como o Pretinho da Serrinha. Ele não está sozinho na música, a família dele é da tradição do jongo. Você vê que em Diáspora a gente começa com uma célula do jongo, tocada com um instrumento que é o karkabou, da África marroquina. É isso que as tradições estão de um certo modo nos cobrando, que elas sejam mantidas, dentro de uma estética que encontre os seus parceiros e a renovação necessária para a evolução.
Arnaldo: Ao mesmo tempo a gente traz o poema de Castro Alves, o trecho do Guesa, do Sousândrade, que abre a música; traz outras informações que fazem com que essa mistura fique potencializada.
Nelson: A poesia do Sousândrade é moderníssima até hoje, mesmo escrita em 1850. Outra canção que tem esse espírito mais do momento cotidiano, da crônica social, é essa da ocupação das escolas. Como é que ela surgiu?
Marisa: Tanto eu como o Arnaldo participamos um pouco desse momento. Quando aconteceram as ocupações, eu fui visitar no Rio e o Arnaldo em SP. A gente percebeu que essa geração mais nova é bem melhor que a nossa, porque a gente cresceu na ditadura, onde não havia associação nenhuma, de nenhum tipo, de estudante, de bairro, de nada! Então você vê como eles já conseguem se organizar, têm mais consciência política e como estavam ali batalhando por uma causa muito nobre. Eram garotos de 15, 16 anos dormindo na escola, lutando por seus direitos, pela educação, nesse momento tão polarizado, em que você é ou não é; como num sistema binário, só existe zero ou um: se você não é uma coisa, então você é outra radicalmente oposta Ao mesmo tempo, estamos num momento de ruptura política, dando um xeque-mate no sistema todo e existe a vontade de criar novos horizontes …
Nelson: Novas formas de se expressar, de exercer o poder.
Marisa: A gente não quer os velhos líderes, os velhos símbolos. A gente quer líderes, mas não são os velhos líderes, a gente quer os símbolos, mas não os velhos símbolos. Temos essa busca de novas orientações para tudo isso. “Vencer um ao outro, assim não dá, o negócio é vencer a si mesmo”. A gente tem que se superar em cada um de nós, e não ficar lutando um contra o outro. Essas mudanças começam em cada um!
Arnaldo: Vivemos esse momento de antagonismo. A gente vê intolerância de muitos lados, a internet é o reino disso, as redes sociais com os haters… Eu acho que tem várias músicas no disco que valorizam essa maleabilidade das pessoas. Você pode mudar de opinião, como em Feliz e saudável…
Nelson: Essa é uma música muito provocativa. Como ousa alguém se dizer feliz e saudável nos dias de guerra em que vivemos? Não pode, não é possível! Desperta um ódio…rsrs
Marisa: Na verdade, feliz e saudável porque a pessoa é capaz de rever suas posições. Eu posso me arrepender justamente porque eu sou feliz e saudável.
Brown: É bonita essa ligação do feliz e saudável com a ocupação. Na minha geração chamava-se de invasão. A gente pegava algum lugar, uma casa, e gerava o que se chama de novas favelas, mas com o intuito de que ali houvesse escola e postos de saúde, ações sociais… Não pela visão do dirigista, mas sim de que a coletividade pudesse ocupar aquilo. Isso sim é feliz e saudável, porque nós não podemos esperar que a educação seja formatada apenas pelos desígnios políticos. As novas gerações estão preparadas porque elas estão fazendo um tipo de ocupação que não é apenas do imóvel, mas uma que diz: “olha, eu estou ocupando meu pensamento com a possibilidade de que o mundo vai ser melhor.”
Marisa: E de tomar para si uma causa coletiva, algo que é público, algo que ao invés de não ser de ninguém, é de todos nós.
Arnaldo: A gente cresceu na ditadura, era criança na época da contracultura, nos anos 60. Depois, nos anos 70, a gente já era meio adolescente e viveu uma série de conquistas que vieram dali e permaneceram, que ficaram como valores que não têm mais volta: a preocupação ecológica, as conquistas comportamentais, a liberdade sexual, enfim, o direito das minorias. A gente viu tudo isso acontecer… E, de repente, a gente passou a viver uma época de vários retrocessos. Coisas que a gente achou que já não existiam mais começaram a voltar, então isso tudo é assustador. E aí tem uma juventude defendendo a escola, que é talvez o valor mais importante, mais básico, para se pensar um futuro melhor… A gente se empolgou com isso. Eu acho que é um motivo inspirador.
Nelson: E os filhos, de que forma a convivência e a experiência com eles, o que eles trazem para casa, contribuiu para essa visão de vocês?
Arnaldo: Eles estiveram presentes o tempo todo lá na Bahia. Meu filho Brás participou de uma das músicas, deu sugestões de letra, acabou entrando como parceiro. Mas o tempo todo havia também o Tomé (meu outro filho); Miguel e Chiquinho, de Brown; o Mano e a Helena, de Marisa. Enfim, nossos filhos estão sempre presentes…
Marisa: Isso já faz parte do cotidiano deles. Contei que outro dia estávamos aqui em casa eu, a Adriana Calcanhotto e a Teresa Cristina quando a Helena chegou e falou: “vocês todas são cantoras ou alguém aqui é normal?” (rs…)
Nelson: Vocês têm planos de shows ao vivo?
Marisa: A gente não tem muito plano, não… A gente tem muitos sonhos. Muitos sonhos, poucos prazos e poucos planos! Vamos ver… A gente se encontrou no ano passado no palco, eu fui fazer show em Salvador, eles apareceram pra dar uma canja e foi lindo! Foi muito poderoso.. Quando rolou foi surpresa total, ninguém sabia! E quando os dois chegaram, parecia um gol do Brasil, final de Copa do Mundo, tipo pênalti. Mas essa pergunta já tem 15 anos: “vai ter mais? vai ter mais? vai ter mais?”
Nelson: E ali começou o Tribalistas 2..
Brown: Realmente não era uma coisa que estava no plano da nossa turma ter, mas está tão gostoso, surgiu com uma força e uma espontaneidade …
Marisa: Na verdade, a criação tem vida própria. A gente não manda muito nisso não, a coisa acontece. A gente pode disponibilizar tempo, disponibilizar vontade, violões, letras e melodias, papel, caneta… mas a coisa tem vida própria, ela que manda, não é?
Arnaldo: A gente também nunca parou de compor. Se aconteceu de fazer uma outra gravação juntos, um projeto mais concreto juntos, é porque chegou esse momento, e a gente não podia forçar e antecipar isso por causa da expectativa dos outros. A gente sentiu que era a hora. Enfim, o próprio volume de composições que tínhamos ajudou…
Nelson: Me falem sobre a música Baião do Mundo
Arnaldo: É uma coisa de chamar importância para uma questão que se tornou essencial diante da escassez, de quando a Cantareira esvaziou… É uma questão que está aí há anos, é mundial. Mas na música a gente explora um ponto de vista celebrativo da água, do poder da natureza.
Brown: Festejar a água. A gente quer ver as coisas melhorando, e eu acredito muito no planeta. Eu estou falando como indivíduo, mas não é diferente no coletivo. Nós continuamos acreditando, nós não desistimos deste lugar chamado planeta Terra, onde precisamos de água, onde precisamos de coesão social, onde precisamos ver o ser humano como pássaro, entende? O pássaro passa por cima das fronteiras. O cara não fica lá: epa, cadê seu passaporte? (rs…) Tô aqui, meu amigo, voando! Ele larga a “caca” dele lá de cima e já é uma semente, já é uma nova flor que brota, é uma nova árvore.
Arnaldo: Somos otimistas! Na hora que a gente tem o refrão “Where are you? Where are you?“, é o personagem que perde o familiar e o está procurando, mas é também a gente falando pra qualquer ouvinte, “where are you?”
Brown: Vambora! Tamos juntos!
Arnaldo: Uma questão que está aí pra todo mundo: qual o seu papel no planeta, na sociedade?
Brown: Está fazendo o quê? Só está reclamando?
Marisa: Tomara que esse novo trabalho traga alegria pra muita gente.
Brown: Pra muita gente!